Problemas vividos pela mãe durante a gestação, abandono dos pais e violência dentro e fora de casa são traumas sofridos no início da vida que podem ser esquecidos ao longo do tempo. Mas o que se apaga da memória fica escrito no DNA. Nos últimos anos, estudos têm mostrado que grande parte dessas experiências negativas deixam marcas genéticas que podem influenciar comportamentos e o surgimento de doenças durante a vida adulta, podendo, até mesmo, serem transmitidas para as gerações seguintes.
O primeiro alerta ocorreu com o estudo dos sobreviventes ao famoso “Inverno Holandês da Fome”, em 1944, após a Segunda Guerra Mundial, devido ao fornecimento limitado de alimentos a algumas regiões da Holanda ocupadas pelos nazistas. Como consequência, até maio de 1945, quando o país foi libertado, uma grave restrição alimentar afetou essas populações, incluindo mulheres grávidas e seus filhos no útero em diferentes estágios da gestação.
As crianças nascidas durante ou logo após a fome holandesa apresentaram baixo peso e propensão a intolerância à glicose ao nascer; na fase adulta, esses indivíduos eram mais suscetíveis a diabetes, obesidade, doença coronariana, coagulação sanguínea alterada, doença renal e aumento da resposta ao estresse. Sessenta anos depois, descobriu-se que houve ativação diferencial de gene entre irmãos do mesmo sexo que não foram expostos a essa privação nutricional durante a gestação. Ainda mais interessante foi observar que filhos dos filhos de mulheres desnutridas durante os três primeiros meses de gestação também sofreram alguns desses efeitos, como suscetibilidade a diabetes e obesidade.
Resultados semelhantes foram observados pela neurocientista Rachel Yehuda da ICAHN (Escola de Medicina Monte Sinai – USA). Em uma pesquisa com gestantes sobreviventes do atentado às Torres Gêmeas em Nova York, que sofreram esse severo estresse pós-traumático, observou-se que os bebês nasceram com alterações no nível de cortisol, o hormônio do estresse e com um aumento na resposta de angústia, quando estimulados, em relação aos bebês de gestantes não submetidos ao incidente.
Em outro estudo com cérebros de vítimas de suicídio, foi possível identificar por meio de seus históricos médicos e de entrevistas com familiares aqueles que tinham sofrido abuso severo durante a infância, seja verbal, físico ou sexual. Os pesquisadores viram que nesse grupo com uma infância difícil, que determinados genes estavam 40% menos ativos quando comparados aos suicidas que não sofreram abuso e também quando comparados aos do grupo controle (pessoas mortas por outras causas, como acidentes de carro, por exemplo).
A exposição da gestante ao tabaco, por exemplo, pode afetar negativamente o DNA de três gerações: dos genes da própria mãe ocasionando o câncer, por exemplo; de genes vitais no desenvolvimento cerebral do seu filho e fortemente associados ao surgimento de diversas doenças psiquiátricas na infância e no adulto (2ª geração), bem como dos genes constantes nas células germinativas desse filho em formação (3ª geração). Assim, as emoções e as experiências de ganhos e perdas criam marcas biológicas (modificações epigenéticas, uma espécie de carimbo no DNA) que são transmitidas de uma geração a outra e se constituem numa linha tênue entre saúde e doença, habilidade e inaptidão, bem como comportamentos saudáveis e de risco.
Uma boa notícia é que uma infância traumática não representa uma condenação definitiva que certamente se multiplicará na família. Em um estudo feito pelo neurocientista Michael Meaney (Universidade McGill), foram comparados dois grupos de ratas: aquelas que tinham recebido lambidas frequentes de suas mães quando ainda eram bebês e aquelas que não haviam recebido cuidados maternos. Os resultados mostraram que os animais lambidos pelas mães se tornaram adultos mais tranquilos.
Embora os mecanismos de transmissão de informação epigenética pelos gametas ainda sejam pouco compreendidos, cabe a todos nós como família, sociedade e poder público proporcionar experiências positivas como alimentação e educação de qualidade, atividade física e ambiente social positivo de modo a reverter a impressão epigenética mal-adaptativa e desencadeadora de vulnerabilidade a doenças para as próximas gerações.
Por: Dra. Rosana de Cássia Oliveira / Dr. Leonardo Gomes Peixoto
(Professores dos cursos de Psicologia e Medicina do IMEPAC)
REFERÊNCIAS:
PERROTTI, A.C.; MANOEL, E.J. Uma visão epigenética do desenvolvimento motor. Rev. Bras. Clín. e Mov. v. 9, n. 4, p. 77-82, 2001.
RIVAS, M.P.; TEIXEIRA, A.C.B.; KREPISCHI, A.C.V. Epigenética: conceito, mecanismos e impacto em doenças humanas. Genética na Escola. v. 14, n. 1, p. 14-25, 2019.
TOLEDO, K. Pioneiro da epigenética fala sobre relação entre ambiente e genoma. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/pioneiro-da-epigenetica-fala-sobre-relacao-entre-ambiente-e-genoma/16965/. Acesso em 17/09/2019.
ZUCCHI, F.C.R. Inato ou adquirido: como fatores epigenéticos influenciam o desenvolvimento infantil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/programas/primeira-infancia/artigos/artigos-ano-2015/inato-ou-adquirido-como-fatores-epigeneticos-influenciam-o-desenvolvimento-infantil-fabiola-cristina-ribeiro-zucchi-ano-2015. Acesso em 29/08/2019.