Há uma premente necessidade de que o operador jurídico se atualize no que diz respeito à existência de importantes dimensões que influenciam o direito, dimensões que não podem ser desprezadas, a menos que o escopo do desenvolvimento da ciência jurídica seja seu contínuo confinamento nas estruturas das formas teóricas, abstratas e ideais.
Parafraseando Lênio Streck: não podemos recorrer insistentemente à Tício, Mévio e Caio para ‘imaginar’ ‘problemas jurídicos’ totalmente desconectados com a realidade, ao passo que fechamos os olhos para inúmeras situações palpáveis que nos cercam diariamente. O direito não reside nas formas, o direito está nas ruas, está em todo lugar.
Nessa mesma linha, ainda existe uma inexplicável cisão na análise da eficácia normativa (insistentemente reproduzida nos maiores diplomas).Há uma formação que prioriza a avaliação da eficácia da norma no contexto do ordenamento jurídico e opta – deliberadamente – por ignorar questões relacionadas, por exemplo, à sua eficácia social. Podemos assim, de dentro da caverna (em uma confortável poltrona), analisar se a forma das sombras produzidas na parede se amolda ao que indica o ordenamento (dever-ser),e, após isso, emitir a sentença. Eis, então, o ofício essencial do operador jurídico.
Uma maior aproximação do Direito com as demais áreas do conhecimento poderia contribuir para atenuar as consequências negativas dessas cisões. Nos últimos anos, pautas extremamente relevantes para a população têm sido votadas no Congresso Nacional. Para citar 3 importantes exemplos: a reforma trabalhista (2016), a Emenda Constitucional 95 (2016) e a reforma previdenciária (2019). Para estes casos, além de verificar a capacidade de produção de efeitos no ordenamento jurídico dos dispositivos legais, cabe também a análise dos efeitos sociais das alterações legislativas. Não se pode ignorar, mesmo que intencionalmente, a influência que a economia exerce sobre o direito (fruição de direitos fundamentais) e vice-versa.
Nesse ponto a interdisciplinaridade assume um papel fundamental. Ela não representa um fim em si mesmo. Ela retira os pesquisadores de cada área do conhecimento de suas cavernas particulares e os reúne na Ágora. Somente assim, algumas expressões que alcançaram existência própria, como ‘reserva do possível’, ‘normas programáticas’ podem ser analisadas criticamente num contexto de realidade social e econômica.
O direito tem um custo. A democracia, por si só, tem um custo. A decisão sobre quanto, como, e se esse custo será pago, reflete diretamente na possibilidade de fruição adequada e justa desses direitos e no exercício pleno da democracia. É nessa conjuntura que o processo decisório sobre o que gastar, como gastar e quando gastar torna-se relevante para a pesquisa jurídica.
Principalmente: a eficácia social de todos os direitos depende da manipulação orçamentária definida pelos nossos representantes. Nas palavras de Sustein e Holmes “both the right to welfare and the right to private property have public costs. The right to freedom of contract has public costs no less than to health care, the right to freedom of speech no less than the right to decent housing” – “tanto o direito ao bem estar social como o direito à propriedade privada possuem custos públicos para sua manutenção. O direito à liberdade contratual não custa menos que o serviço de saúde, o direito à liberdade de expressão não custa menos que o direito à moradia decente”.
Nos momentos de crise econômica – quando a fruição de direitos humanos é reduzida paulatinamente – a necessidade do estabelecimento de interdisciplinaridade é ainda maior. Nessa perspectiva, alguns estudos tencionaram tratar sobre as relações possíveis entre determinações macroeconômicas e o direito, ou a promoção de justiça social. Interessantes artigos que analisam a correlação entre impostos, finanças públicas, orçamento, direitos socioeconômicos e direitos humanos foram reunidos na obra “Human Rights and Public Finance”, livro publicado em 2013.
O exemplar trata do relevante desafio contemporâneo: a conexão entre finanças públicas – decisões orçamentárias – e a concretização (ou não) dos direitos socioeconômicos. Os artigos que compõe a obra tratam de temas mais específicos, como despesas públicas com crianças, políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero, o direito à moradia adequada, entre outros. Um artigo em especial merece destaque: em “Let them eat cake” de Paul O’Connell, pesquisador da Universidade de Londres, o autor debate a posição que os direitos socioeconômicos ocupam na conjuntura da austeridade. O autor argumenta que os processos de tomada de decisões no âmbito orçamentário, na perspectiva de proteção significativa dos direitos socioeconômicos são fundamentalmente defeituosos em dois aspectos: o primeiro refere-se ao fato de que os pressupostos normativo-ideológicos sobre os quais tais processos (decisórios) baseiam-se estão em nítida tensão com a salvaguarda de direitos socioeconômicos; o segundo, em decorrência dessa tomada de decisão ocorrer em um cenário que a executa de forma antidemocrática e opaca. (O’CONNELL, 2013, p. 1607 kindle)
Cabe aqui um interessante contraponto da ideia expressada no nome do título do artigo: “Let them eat cake”, uma frase atribuída à Marie Antoinette, com outra bastante conhecida e proferida por um economista brasileiro artífice do “milagre econômico” entre 1968 e 1973, Delfim Netto, que afirmou ser necessário “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”[1]. Embora as expressões nunca tenham sido confirmadas como originais dos prováveis autores, elas representam momentos de tensões históricas e a luta pela garantia e eficácia de direitos – além de, é claro, guardarem a similaridade entre as referências culinárias.
De todo modo, a intenção era demonstrar que algumas rotas de fuga das cavernas particulares já foram traçadas, cabendo agora ao interlocutor dar o primeiro passo para a construção de um direito real, crítico, interdisciplinar e pragmático.
Por: Camilla Fernandes Moreira
Professora do curso de Direito do IMEPAC / Doutora em Direito pela Universidade de Brasília.
[1] Em resposta ao questionamento sobre a concentração de renda crescente no período.