A situação-problema que gostaria de falar corresponde à crise contemporânea nas relações de ensino. Mas faço uma ressalva, não pretendo com este texto ser resolutivo. Meu objetivo é ser provocativo. Desejo promover uma reflexão que, ao meu ver, invade nossos ambientes de formação.
Voltando ao problema, confesso que tenho dificuldade de definir essa crise. Talvez nem seja necessário. Talvez o primeiro passo seja reconhecê-la, porque de fato, ela apresenta sintomas. Alguns deles já estão bem difundidos na comunidade científica: aumento significativo de transtornos mentais em estudantes e profissionais de ensino (ARIÑO; BARDAGI, 2018); maior incidência de casos de violência escolar (BESERRA et al., 2019); ineficiência dos métodos tradicionais de ensino-aprendizagem (MITRE, 2008; BERBEL, 2011); desmotivação dos estudantes pelos conteúdos e ações educacionais (PORTO; GONÇALVES, 2017).
Esses indícios invadem meus pensamentos, resgatando em minhas memórias falas costumeiras nos corredores da universidade, como: “a culpa é da instituição de ensino, que não cuida”, “a culpa é o professor, que não ensina”, “a culpa é do aluno, que não estuda”, “a culpa é da família, que não educa”. Expressões como estas, que povoam o contexto acadêmico, possuem um sentido comum: a culpa é sempre do outro, e sendo dele, não pode ser minha.
A partir desse cenário, identifico duas questões. A primeira, diz da utilização e do sentido do termo culpa. A segunda, da necessidade de explorarmos, cada vez mais, a relação entre o eu e o outro nos espaços de formação.
Refletindo sobre a primeira questão, recorro a Freud (2010). Em seu texto “O mal-estar na civilização”, o autor aponta que o sentimento de culpa pode estar relacionado com o desamparo humano em relação aos seus próprios desejos. Para viver em sociedade precisamos abrir mão de algumas vontades. Assim, quando realizamos algo não adequado para as convenções sociais, nos sentimos culpados. Esse sentimento provoca um contínuo mal-estar que, se não cuidado, impõe limites ao desenvolvimento pessoal.
Aqui, convido o leitor a substituir simbolicamente o termo culpa, pelo termo responsabilidade. Mais sutil, a responsabilidade diz do lugar que eu ocupo na desordem que me queixo. “O que eu fiz para que isso acontecesse? O que eu poderia ter feito para evitar? Tenho sugestões para as críticas que eu expresso? Como eu sou responsável?”
Não é difícil perceber que existe uma grande vantagem no sentido de responsabilidade sobre a culpa. Se me responsabilizo, me coloco como agente ativo do problema e tenho possibilidade de ressignificar minha realidade. Ao contrário, a culpa me aprisiona ou projeta em um outro os meus fracassos, minhas necessidades. Desta forma, a responsabilidade pode ser libertadora, porque só ela é capaz de produzir autonomia.
A segunda questão, que ao meu ver, também atravessa a crise contemporânea nas relações de ensino, trata dos limites da relação entre o eu e o outro. Observem que no ambiente educacional existem vários outros: aluno, aluna, pai, mãe, professor(a), instituição, sociedade, cultura, etc. Interessante apontar que, possivelmente, em diferentes momentos da vida, nós assumimos todos esses papéis.
Para pensar essa relação, resgato o conceito de liquidez, proposto por Zygmunt Bauman. Vivemos em uma sociedade líquida, que tem dificuldade de enxergar o espaço do outro, porque não compreende o próprio espaço (BAUMAN, 1998). “Quantas vezes realizamos uma autoanálise sobre os sentidos do nosso estudo/trabalho? Quantas vezes nos propomos a cuidar de nossa saúde mental?”
A ausência de um contato real consigo mesmo dificulta o amadurecimento. Ao contrário, assim como o sentimento de culpa, essa ausência aprisiona. Estamos presos a nós mesmos e isso traz resultados: insuficiência de vínculos sólidos, baixa tolerância a frustações, necessidade permanente de sucesso e, por aí vai.
Vivemos em crise. Uma crise crônica que, sem dúvidas, agudiza e produz sofrimentos. Mas não vamos entender isso como algo essencialmente negativo. Mesmo o sofrimento, ainda que traumatizante, pode ser fonte de aprendizagem. Como pontua Nosek (2018):
“Se você tem um fato traumático, difícil, isso é o começo de um trabalho mental. Ninguém faz esse trabalho sem uma agulhada. A gente progride numa encrenca. Senão sentamos e ficamos”.
Nesse sentido, que tal abraçarmos essa encrenca, essa crise? Que tal falarmos mais sobre ela, colocá-la à trabalho e torná-la fonte de aprendizagem? Que tal refletirmos mais sobre nossas responsabilidades antes de lançarmos nossas necessidades para o outro?
Acredito que precisamos e devemos continuar investindo nessa relação, permanentemente. O processo de ensino-aprendizagem, só será de fato efetivo, se a relação entre o eu e o outro for de corresponsabilidade. E a responsabilidade conjunta tem forma. Nela todos caminham juntos, lado a lado, sem protagonismos. Entendendo, cada dia mais, que:
“Educação não transforma o mundo.
Educação muda as pessoas.
Pessoas transformam o mundo”.
Paulo Freire
Obrigado pela leitura. Desejo a todos e todas um ótimo recesso! Nos vemos no próximo semestre. Atenciosamente,
Me. Thiago Artur de Morais – Psicologia
Psicólogo/Docente
REFERÊNCIAS.
ARIÑO, Daniela Ornellas; BARDAGI, Marúcia Patta Bardagi. Relação entre Fatores Acadêmicos e a Saúde Mental de Estudantes Universitários. Psicol. Pesqui., Juiz de Fora, v. 12, n. 3, p. 44-52, 2018.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BERBEL, Neusi Aparecida Navas. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 32, n. 1, p. 25-40, 2011.
BESERRA, Maria Aparecida et al. Prevalência de violência na escola e uso de álcool e outras drogas entre adolescentes. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 27, e. 3110, 2019.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanalise e outros textos (1930-1936) / Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
MITRE, Sandra Minardi et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 2133-2144, 2008.
NOSEK, Leopold. As grandes infelicidades não aparecem nas redes sociais e as grandes felicidades também não”: 13 perguntas para Leopold Nosek. Disponível em: https://epoca.globo.com/as-grandes-infelicidades-nao-aparecem-nas-redes-sociais-as-grandes-felicidades-tambem-nao-13-perguntas-para-leopold-nosek-22967517 Acesso em 03 de junho de 2019.
PORTO, Rebeca Cruz; GONÇALVES, Marina Pereira. Motivação e envolvimento acadêmico: um estudo com estudantes universitários. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 515-522, 2017.