Várias são as demandas que nos chegam ao setting terapêutico para o manejo: ansiedade, tristeza, luto, frustrações, incertezas, decepções, enfim, muitas coisas que podem gerar sofrimento psíquico nos indivíduos e nos grupos. Estes vêm acompanhados de crenças limitadoras que aparecem em forma de pensamentos disfuncionais que podem nos sinalizar esquemas desadaptativos os quais requerem investigação para intervenção e redução dos sintomas que afetam o ser em suas bases, sejam elas, a emoção (Como eu me sinto diante de…?), a cognição (O que eu penso a respeito de…?) e o comportamento (O que eu faço diante de…?), e que podem alterar a sua relação consigo mesmo, com os outros e até sua perspectiva referente aos seus sonhos e objetivos de vida.
Nessa breve reflexão, gostaria de destacar um dos gatilhos clássicos que aparece no contexto das relações afetivas: o fim dos relacionamentos. Esse é um importante fator desencadeador de desordens emocionais que aparecem no setting em discursos enviesados de muita mágoa, tristeza, questionamentos, raiva, que tecem um pano de fundo de autodesvalorização, de um sentimento de abandono ou um vazio intenso que não foi preenchido por amor. Estes são os esquemas básicos quando as necessidades primárias de afeto não foram atendidas: desamor, desvalor e desamparo.
Em algum momento dessas relações, a possibilidade de retomar a individualidade, de imaginar a vida sem o sujeito amado, ou deixar de ser objeto de amor, se torna inadmissível. Um conjunto de fatores desenvolve silenciosamente uma relação de dependência afetiva que aos poucos vai se instalando, como em um tipo de simbiose e, quando por variados fatores a relação acaba, os organismos envolvidos sofrem profundamente a ruptura. Isto porque a relação passa a ser revestida de um significado subjetivo, que é sentido como uma verdade incontestável para quem o gera.
Esse quadro é muito bem explicado na literatura pela Raposa ao Pequeno Príncipe:
“Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo aos teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas.”
Até aqui vai indo tudo muito bem, mas continua a Raposa na sua explicação:
“Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Será para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…”Quando a Raposa diz ao Pequeno Príncipe que “(…) se tu me cativas (…)”, então, na nossa modesta reflexão, diríamos que a Raposa, de maneira subliminar, poderia estar dizendo que, ‘quando você me reveste de um sentido tão belo, algo que eu mesmo não havia notado – pois que, em outro momento ela tem ocasião de dizer que: “(…) o essencial é invisível aos olhos (…)” e uma das coisas mais essenciais em nossa perspectiva psicológica do que conhecer-se, ter um conceito de si mesmo – então fico à sua mercê’.
A frase original, escrita em francês por Saint-Exupéry, nos parece dar uma dimensão mais próxima daquilo que queremos dizer: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”, que, apesar do tradutor ter escolhido para “apprivoiser”, na tradução mais literal, seria “domar” ou “domesticar”. Sem entrar na discussão referente às escolhas lexicais do tradutor, pois nem temos conhecimento pra isso, apenas nos pareceria fazer mais sentido a palavra “domar” ou “domesticar”, pois que, a partir do momento em que o outro dedica o seu tempo – pois “(…) foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante” – a nos revestir de significado tão agradável, então ficamos totalmente domados (dominados) por essa sensação, então surge a “necessidade” que a Raposa dizia ao Príncipe que apareceria caso me cativasses: “(…) se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro (…)”.
A essa sensação gerada no caso supracitado que surge em nossa perspectiva psicológica, damos o nome de reforço positivo, e já dizia B. F. Skinner:
“O que é o amor se não outro nome para reforçamento positivo?”
O reforço positivo é aquilo que faz com que um determinado comportamento tenha sua frequência aumentada, por isso, pensamos que a palavra “domar” caberia muito bem, pois que, oferecendo um reforço positivo eu terei aumentada a frequência na emissão do comportamento que me agrada, assim como o cão que ganha um biscoito por ter feito xixi no lugar certo. Se quiser que esse comportamento seja frequente, continuo oferecendo o que o cão gosta, o biscoito. É claro, guardados os devidos níveis de complexidade psíquica entre os humanos e os cães, contudo, o mecanismo básico é o mesmo, o condicionamento.
O fato é que, quando um dos pares para de oferecer o reforço, (não sinaliza mais o quanto o outro é importante, como no exemplo dado) o que estimulava uma sensação de afetividade atendida, de valor, de acolhimento, então, sensações opostas começam a ser disparadas: desvalor, desamor e/ou desamparo, acompanhados de uma explosão de pensamentos disfuncionais do tipo: “A culpa é minha”, “Eu sou um lixo”, “Eu não mereço ser amado(a)”, e de desvios de comportamento como se sujeitar ‘a tudo’, ‘viver de migalhas’, telefonar mais de duzentas vezes em um único dia, se humilhar, mendigar, não comer, não dormir, até chegar ao ponto de achar que: “Se o outro me bate é porque ainda se importa comigo”. E remetendo uma vez mais aos ensinamentos da Raposa ao Pequeno Príncipe, antes de ir embora ela assevera: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” O indivíduo que deduz que apanha porque o outro se importa está sofrendo de uma distorção cognitiva, ela não está sendo capaz de ver a que ponto chegou seu desequilíbrio emocional, pois seu coração está partido e se “só se vê bem com o coração”, um coração partido não tem condições de ver.
A desregulação emocional, gerada pela cegueira da distorção cognitiva, impede que se veja aquilo que é “essencial” e, muitas vezes, “invisível aos olhos”: cada um merece ser amado pelo simples fato de ser quem é, sem a “necessidade” de ter alguém que diga isso. Esse sentimento de amor próprio pode até ser reforçado pelo que o outro diz, mas não deve depender dele. Contudo, é um caminho longo e, após muito sofrimento, algumas pessoas decidem buscar ajuda, e alguns buscam ajuda na psicoterapia e cabe ao psicoterapeuta, assim como o aviador da história do Pequeno Príncipe que o leva a profundas reflexões, levar a pessoa ao descobrimento (de suas crenças limitadoras e/ou esquemas desadaptativos), ao entendimento (entender o mecanismo da sua fragilidade psíquica) e ao processo terapêutico dos seus afetos que, em algum momento da sua história, não foram atendidos (reduzir os sintomas e controlar possível respostas), e responsabilizá-lo por isso, para que ele saia de uma situação de vulnerabilidade emocional que, fatalmente, o levará novamente à dependência afetiva. Pois, ainda tem ocasião de dizer a Raposa: “Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas”, então que cativemos (domemos) nossos pensamentos, emoções e comportamentos e que sejamos eternamente responsáveis por nós mesmos.
Por: Juliano Marques
Psicólogo responsável pelo NAAP
Referências:
- FUKS, Rebeca. Livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Cultura Genial. Disponível em:< https://www.culturagenial.com/livro-o-pequeno-principe/> Acesso em: 10 Mai. 2019
- RANGÉ, Bernard. Homenagem a Albert Ellis. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 3, n. 2, p. 0-0, 2007.
- YOUNG, Jeffrey E.; KLOSKO, Janet S.; WEISHAAR, Marjorie E. Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Artmed Editora, 2009.