A justiça social como referência teórica para pensar o direito - IMEPAC

A justiça social como referência teórica para pensar o direito

O que torna uma sociedade justa? Como se edifica uma sociedade justa? Que medidas ou mecanismos são mais adequados para propor alternativas para eliminar ou atenuar as injustiças? Sem dúvida, questões complexas e que causam inquietações e disputas. Elas são interrogações recorrentes que tem encontrado ao longo do tempo diversas respostas.

Das diversas possibilidades de se tratar o tema da justiça social, o presente texto apresentará, de forma sucinta, a ideia de justiça social elaborada pelo filósofo político americano John Rawls como uma possibilidade de resposta as indagações levantadas.

Para Vita2 a teoria da justiça de John Rawls é a tentativa, recente, mais importante de harmonização dos valores nucleares da tradição política ocidental, quais sejam, a liberdade; a igualdade; a solidariedade; e, as bases do autorrespeito. Ainda, segundo esse autor, para as teorias da justiça três são os tipos de bens considerados relevantes3 : bens passíveis de distribuição (renda, riqueza, acesso a oportunidades e a “provisão de serviços”); bens que não podem ser distribuídos diretamente, mas são afetados pela distribuição dos primeiros (conhecimento, autorrespeito) e; bens que não são afetados pela distribuição dos outros bens (capacidades físicas e mentais das pessoas). A teoria de Rawls utilizando-se da ideia de bens primários4 abraça os dois primeiros tipos de bens.

Para Rawls5 a estrutura básica da sociedade – principais instituições: políticas, sociais e econômicas – tem um papel decisivo na formação dos seres humanos, bem como, na origem das desigualdades sociais. Dessa concepção decorre seu esforço no desenho de uma justiça que satisfaça tanto as exigências da liberdade, quanto da igualdade entre os indivíduos.

Convicto de que a justiça social é praticada por meio de políticas institucionais, Rawls busca responder a duas questões: a) qual concepção de justiça é mais adequada para especificar, em uma sociedade democraticamente constitucional, os termos de uma cooperação social justa ao longo das gerações; b) em uma sociedade plural quais são as bases da tolerância?

Rawls anota que, a resposta a tais perguntas repousa na existência de uma concepção política de justiça, fruto de um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes e razoáveis, que regule tanto a estrutura básica da sociedade, quanto às discussões sobre elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica6 .

Ocorre que, para Rawls7 a cultura política de uma sociedade democrática tem como uma de suas principais características o pluralismo razoável (o fato do pluralismo): diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais. A coexistência plúrima de concepções e pontos de vista é resultado da existência de instituições livres. Esse ambiente é considerado o aspecto positivo do pluralismo. Mas, essa diversidade obsta a composição de uma base comum referente a temas públicos, políticos e jurídicos. Aqui, a falta de consenso pode ser considerada a consequência negativa do pluralismo. Partindo dessa constatação, Rawls procura estabelecer, por meio da sua concepção de justiça, termos equitativos de cooperação social e de tolerância que possam ser endossado pela pluralidade de doutrinas razoáveis.

À vista disso, a conquista de um consenso sobreposto8 no debate de questões públicas fundamentais, imprescindível para a unidade social. Assumindo que em sociedades democráticas o fato do pluralismo é uma característica imanente, que a organização das principais instituições sociais afeta a igualdades entre os indivíduos, Rawls aponta princípios de justiça para serem aplicados precipuamente na estrutura básica da sociedade. Com isso, ele pretende que seja garantida, ao menos de forma razoável, a distribuição dos bens primários e a repartição dos benefícios da cooperação social.

Alerta-se que, a proposta de justiça rawlsiana é deontológica. Ela não especifica o bem de maneira independente do justo ou não interpreta o justo como maximizador do bem. Para Rawls9 a justiça social é fruto de uma distribuição equitativa de bens que influenciam no sistema de liberdades e obrigações, assim como na repartição dos benefícios da cooperação social.

Assim, a maneira como as principais instituições sociais agem e se organizam edifica uma trama de regras e práticas incisivas na estruturação de uma sociedade. Elas determinam a distribuição dos bens primários afetando, portanto, a capacidade dos indivíduos de agirem ou serem considerados como cidadãos (pessoas livres e iguais).

Entende-se por principais instituições sociais a Constituição, as principais instituições econômicas e sociais como o mercado, o sistema jurídico, a propriedade privada e a família. Desta forma, ao definir os direitos e deveres dos indivíduos a estrutura básica da sociedade estabelece diferentes posições sociais que influenciam na perspectiva e expectativa de vida dos indivíduos. Uma distribuição inadequada de bens primários cria injustiças sociais que obstam a construção de uma sociedade bem ordenada. Dessa visão decorre o motivo de Rawls eleger como objeto primeiro de sua justiça a estrutura básica da sociedade.

Bens primários, neste cenário, são todos os bens considerados necessários para criar as condições e os meios sociais básicos para as pessoas desenvolverem e exercerem suas capacidades morais e uma concepção de bem eficaz. Eles abarcam direitos e liberdades básicas, poderes e prerrogativas a cargos e posições, renda e riqueza e as bases sociais do autorrespeito.

A ideia de bens primários tem a finalidade de favorecer a construção de uma base pública praticável de comparações interpessoais baseadas nas características objetivas das circunstancias sociais dos cidadãos passíveis de exame.

A especificação dessas necessidades é elaborada a partir de uma concepção política e por isso, a interpretação precedente dos bens primários inclui o que Rawls denomina de divisão social da responsabilidade: a sociedade aceita a responsabilidade pela manutenção das liberdades básicas iguais e da igualdade equitativa de oportunidades, pela distribuição equitativa dos bens primários no interior de sua estrutura.

Os bens primários listados, de forma não taxativa, por Rawls são aqueles que o filósofo julga serem necessários para as pessoas se tornarem cidadãs (pessoas livres e iguais). Eles são dispostos em cinco categorias: a) direitos e liberdades fundamentais; b) liberdade de movimento e livre escolha de ocupação; c) poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d) renda e riqueza; e) as bases sociais do autorrespeito 10 .

Alinhavando, para Rawls o problema central da justiça distributiva radica na escolha de um sistema social. A partir dessa constatação o filósofo sistematiza uma concepção de justiça procedimental cujo escopo visa regular o sistema social para que seus resultados sejam justos independentemente de influências contingenciais. Para alcançar tal desiderato ele busca conformar o sistema econômico e social (estrutura básica da sociedade) à diretrizes políticas e jurídicas adequadas (a justiça como equidade) destacando dois princípios de justiça.

O primeiro princípio rawlsiano fixa o direito à liberdade como um valor fundamental para a realização do indivíduo. Mas, como respeitar e promover tal direito? A distribuição equitativa de bens primários pelas instituições sociais é a resposta sustentada. Uma repartição desigual de tais bens afeta, em última instancia, o direito de todos em ter uma igual liberdade. Dessa forma, a privação ao acesso equitativo a bens primários viola o princípio da dignidade da pessoa humana11 .

Rawls defende na formulação do segundo princípio de justiça – da igualdade/diferença – que aqueles que estão em uma situação mais elevada na sociedade tenham expectativas desde que isso resulte em um ganho para os menos afortunados. Assim, o objetivo deste princípio é estabilizar as diferenças econômicas, sociais e naturais redistribuindo o saldo de bens primários de forma que os menos favorecidos da sociedade sejam beneficiados.

Esta é a igualdade democrática aos bens primários sustentada pelo filósofo político. Busca-se transformar os objetivos da estrutura básica de modo que o esquema global das instituições enfatize menos a eficiência social e os valores tecnocráticos em detrimento das necessidades dos menos favorecidos. As diferenças sociais são admitidas, mas desigualdades sociais discrepantes não podem ser justificadas. Elas devem aceder a um modelo organizacional cooperativo em que todos possam contribuir para o desenvolvimento, sobretudo, dos menos privilegiados. Em vista de todo o exposto, defende-se que, numa sociedade democraticamente constitucional, marcada pelo pluralismo, cabe à Constituição e as leis a garantia do uso efetivo destas liberdades para que o igual direito a um projeto satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais seja assegurado a todos.

 

1 Graduada em Direito pela Faculdades Cathedral/RR; Especialista em Direito Público pela Fundação Escola do Ministério Público/RS e Mestra em Direitos fundamentais pela Unoesc/SC. E-mail: annymarieps@gmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/3551509726902204

2 VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. Tese de doutorado, São Paulo, Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1998.

3 Vita anota que essa classificação é de Elster.

4 Para Rawls (2000, p.121) bens primários são aqueles bens que oferecem as condições sociais básicas e os meios necessários para as pessoas desenvolverem suas capacidades morais e uma concepção de bem eficaz. Tais bens incluem direitos e liberdades básicas, liberdade de movimento e livre escolha da ocupação, poderes e prerrogativas de cargo e posições, renda e riqueza e as bases sociais do autorrespeito.

5 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Brasília: Ática, 2000. 6 O que Rawls entende por elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica será retomado mais adiante. 7 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Brasília: Ática, 2000. 8 Esse conceito será trabalhado posteriormente.

9 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 2ª. edição. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

10 RAWLS. John. O Liberalismo Político. Brasília: Ática, 2000. p.228. 11 Aqui é assumido o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana preconizado por Sarlet (2009, p.37): “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicado, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.

REFERÊNCIAS RAWLS, John. A ideia de Razão Pública Revisitada. In: WERLE, Denilson Luis; MELO, Rúrion Soares (Orgs.). Democracia deliberativa. São Paulo: Singular; Esfera Pública, 2007.

______. Justiça como Equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. 1ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. O Direitos dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. O Liberalismo Político. Brasília: Ática, 2000.

______. Uma Teoria da Justiça. 2ª. edição. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. Political Liberalism. Paperback Edition. New York: Columbia University Press, 1996. VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. Tese de doutorado, São Paulo, Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1998.