Aos profissionais do direito são colocados desafios provindos da dinâmica social capazes de causar, frequentemente, insofismável perplexidade.
Entre eles, um dos mais importantes, talvez seja a necessidade de normatizar, com relativa eficácia, a vida social urbana. Tal assertiva é derivada da compreensão de ser este um lugar privilegiado de encontro de pessoas concretas, portadoras de aspirações, expectativas e frustrações dos mais variados matizes. A cidade, nestes termos, requer especial atenção de todos quanto lidam com o direito nas suas diversas searas; de forma especial, aos que laboram no exercício do campo do Direito Público.
Ordenamento jurídico positivo versando, de forma específica, sobre o assunto, já existe, seja nos textos constitucionais federal e estadual mineiro, mas, sobretudo, no caso do município de Araguari (MG), na Lei Orgânica Municipal, bem como na legislação ordinária de competência do município, versando sobre Plano Diretor, uso e ocupação do solo urbano. Nada obstante essa constatação, aos operadores jurídicos falta, via de regra, instrumentos de análise eficazes para uma hermenêutica jurídica mais próxima do cotidiano normatizado, portanto, mais interessante às necessidades de homens e mulheres concretos.
Pensar a cidade como lugar histórico onde o cidadão constrói permanente seu modo de vida é tarefa por demais instigante. Capaz de remeter a sua análise para o campo da compreensão do elemento humano presente em sua constituição permanente, num fecundo processo dialógico, tal postura não deve ser jamais descartada.
Os espaços onde as pessoas vivem, via de regra, são considerados como realidades estáticas, servindo, quando muito, como pano de fundo para a análise das experiências cotidianamente vividas por aquelas. As cidades seriam, segundo essa compreensão, lugares surgidos a partir de circunstâncias completamente alheias à interferência da vontade humana. Fruto de uma complicada e improvável combinação de fatores, cuja produção teria sua explicação num insuperável exercício tautológico, o espaço urbano seria tão somente a expressão sensível da morfologia dos seus componentes materiais, ou seja, do concreto, do tijolo, da madeira, do asfalto, do paralelepípedo, entre outros.
Todo e qualquer espaço físico é impregnado das marcas impressas pelos agentes sociais que o transformam em (seu) território, disputado e (nem sempre) conquistado. O lugar onde se vive é, ao mesmo tempo, construção física e código capaz de revelar ao observador atento, ou seja, aquele disposto a ir além das simples evidências, aspectos significativos dos modos de vida dos sujeitos sociais presentes em sua constituição. Não é realidade estática, pois revela movimento e inquestionável vitalidade produzidos permanentemente pela interferência dos sujeitos sociais que nele habitam.
O território é espaço de vivências, múltiplas e variadas tantas quanto forem os seus grupamentos humanos constituidores. Cada sujeito em luta constante pela sobrevivência na cidade constrói, à sua maneira e de acordo com sua capacidade de fazer valer sua vontade, um pouco do território socialmente vivido. A territorialidade é produzida no conflito social presente em sua construção, sendo a expressão material de relações sociais cotidianamente vividas e experimentadas.
A cidade, vista como território em permanente disputa, é objeto de luta incansável dos seus ocupantes, entendidos como todos aqueles que, cotidianamente, buscam ocupar seu lugar na sociedade urbana, seja na dimensão laboral de suas vidas, seja no aspecto de seus relacionamentos interpessoais, ou ainda, na disputa aguerrida por moradia. Assim, ela adquire uma dimensão capaz de apontar diretamente à perquirição dos modos de vida dos sujeitos presentes em sua constituição. Para tanto, requer-se uma postura metodológica adequada a esse tipo de constatação.
O ponto de partida para o entendimento da realidade social estudada deve ser o sujeito; aquele que ali e a partir dali constrói sua história de vida. É partir do contato direto com eles que torna-se possível compreender todo o enredo por eles constituído, no caso da cidade, também expresso na sua materialidade física. Já não parece ser possível entender a cidade como espaço físico inerte, por eles ocupado na falta de lugar melhor para viverem. Quem ocupa um espaço na cidade, o faz como contribuição à constituição do seu território, especialmente escolhido para nele construir sua própria cultura, ou seja, o processo pelo qual se constitui o seu modo de vida. O conflito social, ali presente de forma concreta e cotidianamente experimentado, imprime marcas capazes de dar nova configuração àquele espaço físico, tornando-o vivo e fecundo. Este, transformado em território (socialmente vivido), adquire significados cujo entendimento deve ser buscado pelo observador sempre a partir do contato com os sujeitos sociais, pois são estes os detentores das múltiplas interpretações dos significados capazes de desvelar a realidade urbana, na sua mais profunda essência.
A partir de concepções como essa torna-se possível compreender, em certa medida, o significado e o valor da cidade para os que por ela lutam. Mais do que um local para morar e ali produzir sua subsistência, trata-se da permanente constituição, de um processo de afirmação pois não é linear e uniforme, ou, em grande número de casos, de um resgate de sua condição de cidadãos, quase perdida no momento em que, num processo histórico excludente, haviam sido colocados à margem do interesse social, seja do poder público ou mesmo da sociedade civil.
Esta territorialidade é produzida pelos sujeitos sociais, não de forma passiva, pois que também influencia seus produtores. Ela é constituída dentro de um rico processo “de mão dupla”: forma e é formada por todos os que nela – e a partir dela – constroem suas experiências de vida, em um constante processo de experimentação de seu cotidiano. Nestes termos, as pessoas presentes na constituição da realidade urbana são profundamente marcadas pela realidade por eles mesmos construída. Dito de outra forma, elas carregam as marcas do espaço social no qual vivem. Dessa forma, a materialidade física da expressão visível da cidade seria capaz de dar pistas seguras das características sociais dos sujeitos que ali habitam, pois está carregada dos sinais deixados por estes últimos. De outro lado, o conhecimento profundo do modo de vida apresentado por um certo grupo social no espaço urbano, tornar-se-ia instrumento poderoso de interpretação do lugar por ele efetivamente ocupado na cidade.
Compreender, portanto, a cidade é buscar o entendimento da trama social nela e a partir dela cotidiana e permanentemente construída. As duas expressões da territorialidade urbana, a material e a humana, são componentes historicamente imbricados. Apesar de um não se sobrepor ao outro, ocultando e anulando suas características próprias, estão interligados na tessitura da realidade citadina. Esta está repleta da vitalidade das múltiplas experiências conflituosas presentes no seu fazer-se permanente.
Dessa forma, o espaço urbano é realidade viva, porque prenhe das inúmeras possibilidades de construção de outras formas de relacionamentos intersubjetivos. É realidade em movimento, capaz de causar perplexidade em todos quanto esperam ter alcançado o fim da história, como se o que vê hoje nas modernas construções urbanas, sejam públicas ou privadas, fosse a coroação definitiva de um processo evolutivo já exaurido. A esses só resta o vaticínio de uma profunda decepção quando, afrontados em suas convicções, perceberem não ser possível deter o curso da vitalidade das experiências humanas vividas socialmente.
Por: Dr. Paulo Roberto de Oliveira Santos