O homem como um ser de angústia: o que pode o saber-fazer do Psicólogo?

O homem como um ser de angústia: o que pode o saber-fazer do Psicólogo?

O que é a angústia?  Seria “este mal-estar a fazer-me pregas na alma”, tal como dissera Fernando Pessoa (2009)? Ou aquela sensação nauseante denunciada por Sartre (2015) diante do tédio existencial? Ou ainda o absurdo evidenciado por Camus (1961) ante o abismo existente entre a busca humana por uma compreensão lógica das coisas e a ausência de sentido oferecida pelo caos mundano. O problema aqui não se encontra na resposta, mas na colocação da pergunta.

A corrente filosófica do existencialismo se atentou para essa questão ao perceber que muito preocupada em estabelecer um conhecimento racional seguro, a filosofia havia se esquecido de algo crucial: a existência humana. Kierkegaard (2013) percebeu essa lacuna e realizou uma contundente crítica ao excessivo racionalismo de sua época, representado pela filosofia hegeliana. Ao colocar as questões existenciais no centro da investigação filosófica, o pensador dinamarquês dedicou parte de suas reflexões ao caráter angustiante do existir humano, publicando em 1844 sua obra “O conceito de angústia” (Begrebet Angest).

Ao debruçarem-se sobre os dilemas existenciais do homem, os existencialistas não buscavam um entendimento lógico ou explicativo-causal da angústia, uma vez que isso significava manter-se refém da pureza racionalista das correntes tradicionais. A colocação da pergunta passa, portanto, por uma postura compreensiva, capaz de penetrar na profundidade da experiência humana, evitando qualquer comprometimento com a perspectiva causalista do pensamento filosófico-científico.

Conforme concluiu Kierkegaard, não é possível apreender a existência de um modo racional, dado que essa envolve elementos que escapam à concepção meramente lógica do conhecimento.  Logo, falar a respeito da angústia não é buscar uma definição ou precisar um conceito, mas sim compreendê-la na qualidade de uma experiência existencial. A partir desse olhar, é possível entendê-la como algo que permeia a vida do homem e que portanto a constitui. A condição humana, isto é, a sua peculiar posição diante do mundo, se torna nesse sentido um lugar de angústia.

Em seu famoso romance filosófico “A náusea” (La nausée), Sartre (2015) traduziu esse lugar de angústia como uma sensação nauseante. Na trama o personagem Roquentin, em meio as suas pesquisas historiográficas e reflexões existenciais, foi acometido pelo que denominou de Náusea. Ao tentar identificá-la e descobrir seu significado, o historiador se surpreendeu ao concluir que “Então é isso a Náusea: essa evidência ofuscante? a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca. E subitamente, de repente, o véu se rasga: compreendi, vi. A Náusea não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu (Sartre, 2015. p. 144)”

Longe de ser uma doença, uma mera sensação ou uma vertigem, a náusea era ele mesmo. É nesse sentido que os existencialistas vão dizer que em termos ontológicos o sofrimento ou a angústia é algo que constitui o ser do homem, de modo que se estabelece como um ser-sofrente. Entretanto, ao atentarmos para o processo de constituição dos saberes e práticas das ciências psi, observaremos uma equivocada compreensão acerca da condição de angústia do homem, visto que alicerçadas no pensamento científico tradicional, acabaram por negligenciar as especificidades do ser humano (Holanda, 2014).

Em seu percurso histórico-científico a Psicologia, ao procurar conquistar seu status de ciência, submeteu-se à concepção objetivista do conhecimento, associando-se assim ao modelo científico-natural vigente. Como consequência, transpôs para sua esfera de investigação a metodologia naturalista, pois somente essa poderia fornecer o rigor exigido pelo paradigma científico em voga. Dito de outro modo, a Psicologia somente poderia compor o rol das disciplinas científicas caso conseguisse colocar seu objeto de estudo, a psique, à prova da exatidão objetivista imposta pelo naturalismo científico. Portanto, a ciência psicológica deveria objetificar o psiquismo, tornando-o passível de mensuração, quantificação e observação.

Todavia, tal caminho metodológico gerou uma infinidade de problemas que estão fundados em uma frágil concepção a respeito da psique, ou melhor dizendo, em uma compreensão inconsistente acerca do ser humano. O objetivismo naturalista adotado promoveu um reducionismo, uma vez que desconsiderou os elementos subjetivos que envolvem o próprio processo de conhecimento. A ciência, nesse sentido, acabou perdendo de vista a subjetividade humana, atendo-se meramente aos aspectos objetivos da realidade. No caso da Psicologia, isso atingiu o núcleo de sua cientificidade. Ao propor-se a investigar o psiquismo, adotou contraditoriamente uma visão cientifico – metodológica que levava em conta apenas um estéril objetivismo que nada ou pouco dizia sobre o homem.

Alicerçado nessa concepção, o saber-fazer do psicólogo descuidou-se da subjetividade humana, concebendo práticas psicológicas reducionistas. Inspirada pelo modelo biomédico, tal práxis centrou-se na doença, na busca por um diagnóstico e no desenvolvimento de recursos técnicos fundados em uma lógica explicativo-causal. As intervenções são pautadas assim em uma visão mecanicista, enxergando o homem como um mero conjunto de processos causais, análogos a um funcionamento maquinal.

A angústia tornou-se então sinônimo de doença, devendo ser eliminada encontrando-se a causa que a explique. Assim como Roquentin havia pensado antes de sua fatídica conclusão, a Psicologia tomou a angústia como adoecimento ou algo que acomete o indivíduo e pelo qual ele esta submetido. Contudo, se a angústia é entendida como aquilo que permeia a existência, eliminá-la seria o mesmo que retirar o caráter humano do existir.

A angústia portanto não é algo objetivo, que apresenta uma causa e que deve ser extinta, pois ela é a própria existência. Existir é se angustiar diante das escolhas, da liberdade, da responsabilidade, da finitude, da busca por um sentido e da ciência de que o homem é ser que se auto-determina. Negligenciar isso é desumanizar a prática psicológica, transformando-a em um asséptico tecnicismo. Mas, se a angústia não é passível de ser eliminada, dado que constitui a própria existência humana, o que pode o saber-fazer psicológico diante dela?

Justamente buscar uma práxis que ao contrário de uma “cura” higienista, possibilite a expressão e compreensão dessa angústia. Para isso, é necessário que as práticas psicológicas estejam alicerçadas em uma clara compreensão a respeito do homem, tendo em vista suas especificidades estruturantes. Ao invés do mecânico tecnicismo, o psicólogo deve buscar em sua atuação uma postura de estar – com esse sujeito de angústia, promovendo um clima de acolhimento e cuidado que leve em consideração a sua humanidade. Em síntese, lembrando novamente de Fernando Pessoa (2009), diante dessa “angústia sem remédio” ou dessa “febre na alma”, pode muito o saber-fazer da Psicologia. Entretanto, tal poder não é aquele que submete e que desumaniza, ao contrário, é o que promove um cuidado humanizado, levando em conta a complexidade da subjetividade humana.

Por: Prof. Me. Mak Alisson Borges de Morais

Referências

  • Camus, A. (1961). O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Livros do Brasil.
  • Holanda, A. (2014). Por uma Clínica Fenomenológica do Sofrimento: o sofrer é do sofrente e do existente. In: I. I. (Org.), Sofrimento Humano, Crise Psíquica e Cuidado: dimensões do sofrimento e do cuidado humano na contemporaneidade (pp. 117-153). Brasília: Editora Universidade de Brasília.
  • Kierkegaard, S. A. (2013). O Conceito de Angústia: ma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. (A. L. M. Valls, Trad.). Petrópolis, Vozes.
  • Pessoa, F. (2009. Obra poética IV – Poemas de Álvaro de Campos. Porto Alegre: L&PMPocket
  • Sartre, J. P. (2015). A Náusea. (R. Braga, Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.