A ótica judiciária na edificação da identidade feminina nos processos crimes entre os anos de 1940 a 1950 em Araguari/MG. - IMEPAC

A ótica judiciária na edificação da identidade feminina nos processos crimes entre os anos de 1940 a 1950 em Araguari/MG.

É em um contexto determinado que exercitamos cotidianamente um intenso intercâmbio de ideias, experiências e reflexões sobre as nossas ações e das outras pessoas, ocasião em que nos tornamos sujeitos capazes de uma interpretação da própria interioridade subjetiva e da exterioridade social com a qual contracenamos. Momento em que são levantadas possibilidades de várias perspectivas para uma mesma questão, como forma de ressaltar que a partir de uma postura plural e multirreferencial podemos praticar nossa inserção como sujeitos que interrogam, interpretam e imprimem sentido ao que fazem.

Deste modo, somos seres históricos, uma vez que, nossas ações e pensamentos se modificam no tempo, à medida que enfrentamos os problemas não só da vida pessoal, como também da experiência coletiva, ou seja, o presente não se exaure na ação que realiza, mas adquire significado pelo passado e pelo futuro almejado. Não nos compreendemos fora de nossa prática social, porque esta, por sua vez, se encontra imersa em um contexto histórico-social sólido. Assim sendo, o presente artigo tem como objetivo analisar como a justiça em Araguari, nos anos de 1940 a 1950, constrói a identidade feminina araguarina. 

As identidades sociais são constituídas pelo discurso, compreendido como prática social. As posições dos sujeitos são, então, heterogêneas; variáveis de acordo com o contexto social. Considerando esses pontos, traçamos algumas implicações entre o texto jurídico dos processos crime e a construção da identidade das mulheres em Araguari em um momento que procuraram traduzir os pronunciamentos dos juízes e promotores em palavras de ordem e em linhas de conduta.

É importante chamar a atenção para o fato de utilizarmos processos-crimes judiciais, uma vez que, recentemente, vários estudiosos os utilizam como objeto de pesquisa, que são essenciais à compreensão dos conflitos sociais e à posição do Poder Judiciário em uma determinada época. Por isso, resolvemos trabalhar com o acervo do Fórum Osvaldo Pieruccetti de Araguari, visto que, abriga processos da Comarca de Araguari desde o ano de 1898 até 2019. Entre esses vastos acervos, há processos-crime de homicídios, ofensas físicas, defloramento, ameaça de morte e lesões corporais leves etc., envolvendo homens e mulheres, nos quais se pode observar a posição assumida pelo Poder Judiciário na região, possibilitando pesquisas na área da História e do Direito e também a compreensão das relações de gênero na época em foco.

Nesta exposição, não vemos os processos-crimes como o espelho da criminalidade, mas apenas amostras, fragmentos da realidade social dos incriminados e da sociedade em que vivem. As diversas partes que compõem um processo criminal demonstram uma riqueza de elementos quantitativos e qualitativos que o torna uma fonte primaria inexaurível. Desde a conexão entre o delegado e juiz, as indagações policiais, o corpo de delito, e até os autos de perguntas e condenação, podem ser estudados separados ou em conjunto, dependendo do objeto da pesquisa.

Com efeito, a elaboração e promulgação de um novo código penal em 1940 apresentou-se como uma resposta às necessidades de adaptação das antigas prescrições legais à realidade de uma sociedade vincada pelas transformações inscritas no projeto de modernização conservadora do governo Vargas: industrialização, urbanização, difusão de novos meios de comunicação, cultura de consumo e de lazer, dentre outras.

No entanto, se faz necessária a exposição de uma sucinta análise histórica do período de 1940 a 1950 no Brasil, para entendermos a formatação do Código Penal vigente no momento deste estudo. De 1940 a 1945, na história brasileira é conhecido como Estado Novo, terceira e última face da Era Vargas que durou de 1937 a 1945. A característica principal do Estado Novo era o fato de ter sido propriamente um regime ditatorial inspirado no modelo nazifascista europeu, então em voga naquela época.

As ações adotadas feriam diretamente as instituições democráticas, o Congresso Nacional foi fechado, bem como as assembleias estaduais e câmaras municipais. O Poder Executivo passou a ter o domínio ativo sobre as demais instâncias de poder, com o pleno apoio das lideranças militares. Outro fator expressivo foi a reforma penal que implicou na origem do Código Penal de 1940, com um discurso modernizador do direito penal e de implementação da concepção de defesa social dos quais quinze foram idealizados por defensores do Estado Novo.

Código Penal Brasileiro, segundo se aplica aos demais normativos brasileiros, transcorre também de um processo histórico de formulação e de caracterização de conceitos. Ele passou a vigorar ainda no governo ditatorial de Getúlio Vargas, 1941, e sob a égide da Constituição Autocrática de 1937. Contudo, é importante salientar que o Código Penal teve sua procedência numa ocasião difícil da história, em plena Segunda Guerra Mundial e o início da reconstrução do pós-guerra, e são notórios os desequilíbrios regionais e as enormes desigualdades sociais, momento de alta do custo de vida, isto quer dizer, que todas as mudanças que estavam sobrevindo refletiam no modo como a sociedade via, analisava e julgavam as mulheres.

A aparente quietude das histórias contidas nos processos-crime esconde a dinamicidade e a riqueza expressiva que saltam de suas páginas amareladas pelo tempo e transformam esse meio de comunicação impresso em um dos produtos culturais de uma época. Aparentemente inócuas, escondem por trás de seus depoimentos, defesas e acusações, mensagens eficazes que nos fazem falar, escrever e portar materializando identidades e representações que são constantemente ordenadas para constituir o real, como enfatiza Jodelet (1989, p. 36), “pode-se entender que as representações sociais, enquanto sistemas de interpretação, regem nossa relação com o mundo e com os outros, orientando e organizando nossas condutas e as comunicações sociais”.  

Assim sendo, em várias ações judiciais sejam elas, de ofensas física, defloramento/sedução, lesão corporal está impresso a invisibilidade e visibilidade da violência contra as mulheres, como podemos ler abaixo:

 

O denunciado encontrando-se, com Maria Luiza, que ia acompanhada de seus filhos menores, sem discussão vibrou na mesma, várias pancadas, com um chicote ou relho que tinha à mão, produzindo-lhe as lesões descritas no auto de corpo delito. Segundo afirma o próprio indiciado, em suas declarações, assim procedeu em consequência de constantes brigas entre sua mulher e a ofendida, (Processo-crime, 10/09/1940, maço 38).

 

Ao terminar o julgamento, o réu foi condenado a três meses de prisão celular, mas antes a defesa argumentou que o réu era um pobre homem analfabeto, homem rústico, lavrador do campo, incapaz de compreender a gravidade da ação que praticou.

Deste modo, apreende-se que a argumentação da defesa ou da acusação se convertem em possibilidades de naturalização de valores, modelos e paradigmas que são reproduzidos na memória coletiva sob a forma de identidades e representações que são absorvidas como normas e verdades.

Nesse litígio, o advogado de defesa recorre afirmando que o juiz é um indivíduo que tem coração e cérebro em movimento, auscultando a dor humana onde ela se encontre, embora seja “obrigado” a castigar os que erram, em benefício da comunhão social, entretanto, em seguida afirma que não são as penas elevadas que corrigem os defeitos do homem delinquente. Muitas vezes, a “dose excessiva do remédio” causa a morte do doente, e o excesso de rigor fomenta a revolta no espírito do culpado.

   Nessa perspectiva, evidencia a dificuldade que as mulheres têm para cuidar, proteger e romper com a violência que as vitimiza, uma vez que, ao recorrer do papel do juiz e da representação social do homem do campo ignorante e rústico, o defensor reatualiza e revitaliza a tessitura das redes de sentidos dos papéis, valores e paradigmas sociais, legitimando a construção, as ações e a fala dos personagens, aonde são instaurados e naturalizados os papéis masculinos e femininos.

Foi encontrado outro processo, em que o réu J. C., cisterneiro, casado eclesiasticamente há cerca de oito anos com Elvira Maria, de quem separou-se, havia quinze dias, não se conformando procurou sua antiga companheira para voltarem a ficar juntos. Elvira recusou a proposta irritando o acusado, então, o denunciado a agrediu com canivetadas e está conseguiu fugir, procurando refúgio na casa do soldado José Joaquim, momento em que foi preso pelo militar.

O réu foi condenado a um ano de detenção com trabalho, a cumprir na cadeia pública de Araguari. Depois de ter cumprido oito meses de pena, requereu liberdade condicional, ocasião em que o advogado de defesa, mais uma vez, utiliza como desculpa para o delito, ser o réu um “indivíduo ignorante, analfabeto, paupérrimo, delinquente passional, vítima do ciúme”. Porém, ficou estipulado pelo juiz que o sentenciado teria de seguir algumas condições, tais como: não usar armas e não tomar bebidas alcoólicas, não frequentar lugares onde se praticam jogos ilícitos e libações espirituosas, teria de procurar emprego fixo, na cidade ou na roça, no prazo de 20 dias, fazendo a devida comunicação.

  Nota-se, que a defesa recorre ao analfabetismo e ser ignorante para justificar a contravenção do réu. Ao nos deter um pouco mais nos processos crimes, vamos notar que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de responsabilidade do agressor. A sociedade cultiva valores que incentivam a violência, como podemos ler na ação judicial contra José Chaves. Daí provém o absoluto descaso de que sempre foi alvo a violência contra as mulheres na sociedade brasileira. 

Constatamos, portanto, que quando o delito era contra outro homem, o discurso mudava de tom e grau, como se pode ver na denúncia contra Mariano, solteiro, garimpeiro, com 22 anos de idade; deu um tiro que atingiu a parte superior da coxa direita de João Marques, fazendeiro e industrial em Engenheiro Betout.

De acordo com Vistos estes autos, o juiz escreveu que o réu

Revelou-se um indivíduo de maus bofes, de caráter perigoso, capaz de bravatas criminosas. Sua fuga, após o crime, deve ser interpretada como indício grave de sua responsabilidade. Dessa massa é que se formam os temíveis bandidos. (Processo-crime, 30/07/1942, maço 40).

 

Mediante a análise das informações expostas acima, constatamos que não houve apelação e nem o juiz se pronunciou a favor do denunciado. Mas pelo contrário, ele desqualificou e reforçou o perigo que representava o querelado, assim sendo, foi condenado a um ano de detenção, na cadeia local. Nota-se que as decisões legais tomadas se encontram e se cruzam, com a deliberação social.

Estes conflitos se dão num momento crucial da história, ou seja, num momento de transição da guerra para a paz, quando a população carente, tinha de conviver com as agruras de um futuro incerto, baixos salários, longas jornadas de trabalho. Assim, muitos optam por desempenharem atividades consideradas à margem da sociedade, exercendo atividades autônomas que lhes garantissem a sobrevivência. E as mulheres restavam os serviços domésticos, esperava-se um comportamento passivo, de preservação da virgindade, a obediência aos pais e aos maridos.

       Mediante o exposto é perceptível que o casamento agia como papel disciplinador da sexualidade feminina. A mulher que se entregasse ao homem sem ser casada era desonrada perante a sociedade e pecadora em potencial. Desta forma,

 

A honra feminina estava vinculada à sua sexualidade, significando o mesmo que ser virgem e, para isso, pais, maridos e sociedade mantinham a mulher sob uma intensa vigilância para que não ficassem afamadas, pois a desonra dificultava que encontrassem maridos. (SILVA, 2001, p. 164)

 

A ênfase da identidade da mulher é colocada em seu comportamento privado, doméstico, que se ajuíza no âmbito público. Sua identidade social como esposa e mãe é acompanhada pelos adjetivos honesta, direita e respeitável, etc., e as atitudes a eles correspondentes: não sair de casa sozinha, era trabalhadeira, boa filha etc. Isto significa, que as identidades não estão livres do jogo do poder, de divisões, contradições e diferenças justapostas.

A identidade social é o modo como olhamo-nos, identificamos, categorizamos e fazemos comparações nos diversos contextos; construída a partir dos parâmetros e expectativas estabelecidas pelo meio social. Uma vez que a identidade é resultado de uma construção social e faz parte da complexidade e da heterogeneidade dos grupos sociais. A identidade se constrói, se desconstrói e se reconstrói, segundo as situações de vida em sociedade.

Em 1945, a ditadura do Estado Novo chegou ao fim; entrou em crise devido a pressão das forças políticas de oposição, tanto de caráter elitista como popular e foi substituído por um regime democrático.

Na década de 50, aumentaram as pressões moralistas sobre as mulheres e o Código Penal foi um instrumento que procurou normatizar, classificar e qualificar modelos de comportamento feminino, intencionalmente, por meio de múltiplas estratégias e táticas, com intuito de fixar uma identidade feminina “normal e duradoura”.

Se pensamos em todos os casos em que aparecem a figura feminina nos processos crime que tramitaram em Araguari nas décadas de 40 e 50, apreendemos os limites permitidos e proibidos as mulheres dentro do espaço social; existem ainda os limites pessoais, as regras de “boa conduta” a que elas em geral devem submeter-se.

Deste modo, o Código Penal é a lei que regula a intercessão máxima do Estado na vida das pessoas, estabelecendo obstáculo a máxima da liberdade de ir e vir. Somente a prática das condutas previstas nas leis penais, sendo o Código Penal a mais importante destas, é que possibilitam o Estado a desempenhar seu monopólio da violência legal, encurtando a liberdade do cidadão.

Dessa maneira, em virtude do seu caráter coercitivo, as normas penais servem como instrumento legitimador dos discursos, porém, ocorre que as normas podem tanto legitimar discursos que preguem a igualdade de gênero como discursos que legitimam as suas diferenças.

Nosso Código Penal de 1940, mostra evidências, ao tratar dos crimes contra a dignidade sexual, com uma abordagem ideológica machista e paternalista da época, carregada de questões moralistas, que levaram o legislador a intitular essa gama de crimes “atrozes” como Crimes Contra os Costumes.

Portanto, a instituição jurídica se estabelece como uma ordenação de atividades, executadas por determinados executores, com conhecimento especializado para exercerem seus papéis no espaço social de que participam. De tal modo, que a identidade se constrói, se desconstrói e se reconstrói, segundo as situações de vida em sociedade, permitindo ao indivíduo localizar-se e ser localizado socialmente. 

 

Por: Gilma Maria Rios

Professora do curso de Direito do IMEPAC

 

Referências Bibliográficas

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

DEL PRIORE, Mary (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Ed. UNESP, 1997.

JODELET, Denise (org.). Les représentations sociales. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.

MARCILIO, M. Luiza. Família, Mulher, Sexualidade e Igreja na História do Brasil. São Paulo: CEDHAL-CEHILA/Ed. Loyola, 1993.

PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanezi. Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

SILVA, Marilda S. da. Dignidade e transgressão. Campinas: Edunicamp, 2001.

SONTAG, Ricardo. “Código criminológico”? Ciência jurídica e codificação penal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2015.